Era 1975, tempo em que as missões evangélicas ainda gozavam de prestígio
junto ao governo brasileiro. A convite do governo, um casal de
missionários linguistas norte-americanos veio ao Brasil para atuar com
um pequeno e esquecido povo indígena da Floresta Amazônica. Ainda com um
parco conhecimento da língua portuguesa, embrearam-se pelo interior do
Amazonas até um pequeno vilarejo indígena nas fronteiras com a Colômbia.
Souberam que, não muito longe dali, distante “apenas” dois dias de
canoa, havia uma aldeia do seu povo alvo.
No vilarejo tiveram
contato com um indígena daquela aldeia e então empreenderam a primeira
viagem, planejando passarem alguns meses com o povo. Descendo um rio e
subindo outro, depois dos “apenas” dois dias de viagem, chegaram
finalmente à aldeia, mas foram recebidos unicamente pelo indígena do
primeiro contato. Tentaram ficar e esperar os demais retornarem das
roças, quando perceberam que, na verdade, todos estavam por ali, mas
escondidos. Imaginaram que poderia ser timidez do povo, mas logo
perceberam que era hostilidade e o indígena do contato esclareceu que a
aldeia não queria recebê-los.
Confusos e desapontados,
retornaram para o vilarejo depois daqueles poucos minutos na aldeia.
Posteriormente ficariam sabendo a verdadeira razão de terem sido
rejeitados. Alguém havia lhes amedrontado, dizendo que os “brancos”
iriam dar presentes, depois lhes dariam injeções e quando estivessem
gordos os comeriam!
Apenas na terceira viagem é que finalmente conseguiram estabelecer contato com o povo, sendo alegremente recebidos.
Os
próprios indígenas fizeram uma “casa” para os missionários, coberta de
palha e fechada com varas, bem ao estilo local. O casal passou ali cerca
de quatro meses, sendo os primeiros a coletarem dados linguísticos
daquela complexa língua e a fazerem os primeiros apontamentos culturais.
Como sua autorização para atuarem ali era de apenas um ano, findo o
período voltaram à cidade para a renovarem. Qual foi sua surpresa
quando, apesar de inicialmente convidados pelo governo, tiveram a
renovação recusada! Iniciava-se um angustiante período de expectativas
de retorno, mas sonhos frustrados. Apesar das diferentes e insistentes
tentativas, não conseguiram nova autorização e então passaram a orar ao
Senhor por novo abrir de portas.
Coincidência ou não, do outro
lado do Brasil, numa esquecida fazenda do interior de Minas Gerais, dona
Maria, uma simples e iletrada lavradora braçal, descendente de
indígenas, esposa de um vaqueiro, sertanejo da Bahia, dava à luz um
menino, irmão caçula de onze. Ao levar seu filho para a consagração,
acabou discutindo com o vigário quando este mencionou que os pais não
conheciam a Bíblia. Resultado do desentendimento, levou a Bíblia do
altar emprestada para casa e como nunca havia frequentado uma escola,
pôs suas filhas adolescentes para ler. Impaciente com a pouca disposição
das filhas, resolveu que ela mesma aprenderia a ler. Alfabetizou-se
lendo as Escrituras, passou a compreender razoavelmente o texto e se
revoltou ao ler sobre imagens de escultura em Êxodo 20. Queria saber
mais, mas não havia nenhuma igreja evangélica naquela região.
O
único testemunho não católico que encontrou foi o de duas viúvas
adventistas num povoado não muito distante dali. E elas colocaram lenha
na fogueira ao lhe mostrar o Salmo 115. Indignada, dona Maria rompeu com
o catolicismo. Alguns meses depois, passou pela região um evangelista
nacional, fruto do trabalho de uma missão inglesa. Encontrou dona Maria
já convertida, crente no Senhor Jesus. Esse encontro resultou na
conversão de várias outras famílias e no plantio de uma pequena igreja.
Enquanto
isso, aqueles missionários norte-americanos continuavam orando pelo
povo perdido da Amazônia. Em meio ao processo de discipulado, Dona Maria
leu a história de Ana, que consagrou Samuel ao Senhor. Foi impactada
pela narrativa e quis fazer a mesma coisa. Tomou seu filho, agora com
pouco mais de três anos, entrou no quarto e o entregou ao Senhor: “Os
outros já são grandes e não tenho domínio sobre eles, mas este quero
entregar para a sua obra, Senhor”.
Aquele menino cresceu ouvindo
essa história. Aos dezesseis anos, o Senhor lhe trouxe convicção
confirmando seu chamado. Ele entendeu que deveria ser missionário. No
momento certo ingressou num seminário teológico, desejoso de ir para a
África. Não sabia ele que os missionários norte-americanos continuavam
orando pelo povo da Amazônia. No seminário, o jovem vocacionado conheceu
uma linda jovem, também vocacionada, por quem se enamorou e com quem se
casou. Juntos seguiram se preparando para a África por vários anos.
Seminário concluído, formação missiológica também, procuraram uma boa
agência missionária com projetos na África. Ao final do processo de
filiação receberam a notícia de que as portas para onde iam haviam se
fechado para estrangeiros devido a conflitos políticos. Imagine para
onde foram redirecionados?! Sim, para a Amazônia brasileira! Exatamente
para aquele povo indígena pelo o qual os missionários norte-americanos
oravam há trinta anos!
Na verdade, em 1986, o Senhor já havia
levantado duas jovens e bravas missionárias brasileiras para aquele
povo. Mas, ao chegarem àquela aldeia onde os norte-americanos tinham
estado dez anos atrás, se depararam com uma onda de garimpeiros
explorando o subsolo nas proximidades. O clima era tenso e hostil. Por
isso, elas tiveram de ir para uma aldeia bem distante dali, em outra
região.
Mas os missionários norte-americanos continuavam orando
pelo povo do seu coração. Assim, em 2006, o menino de Minas Gerais e sua
jovem esposa finalmente chegam para atuar na mesma área em que os
missionários estiveram em 1975. O casal faz amizade com aquele indígena
que, na época jovem agora ancião, havia recebido os missionários e
ensinado a eles as primeiras palavras.
Aquele casal
norte-americano, hoje de volta ao seu país, são Daniel e Cheryl Jore.
Aquele povo indígena chama-se Yuhupdeh. E aquele menino sou eu. Essa é a
minha história.
***
Minha
esposa e eu fomos para o Amazonas porque os planos do Senhor não podem
ser frustrados. Ele não desiste do seu eterno propósito de se fazer
conhecido a todos os povos da terra e Ele ouve as orações dos seus. Há
oito anos estamos no Amazonas, atuando entre os Yuhupdeh e transitando
pelo universo indígena. Temos presenciado o Senhor fazer coisas lindas,
tido notícias de incontestáveis manifestações da graça de Deus e vivido o
privilégio de servir ao Cordeiro onde pouco ou nada se ouviu sobre Ele.
Eu tinha tudo para ser vaqueiro, seguindo a tradição da família, mas o
Senhor me deu outros rebanhos.
Isso me trás sempre à mente que o
chamado ministerial não se baseia na capacidade humana, mas, sim, na
graça do Deus que chama. Faz-me lembrar “que não foram chamados muitos
sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre
nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para
envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para
envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as
desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a
fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus” (1Co 1.26-29). Por
isso temos um “tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder
seja de Deus e não de nós” (2Co 4.7), pois “a minha graça te basta... o
poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9).
Essa verdade é
desafiadora e libertadora, pois aqueles que se julgam capazes não podem
se vangloriar e os que se acham incapazes não podem se escusar. Resta a
cada um entender seu chamado e obedecer àquele que nos chama.
E, sim, me faz lembrar também que Deus responde orações!
• Cácio Silva
é pastor presbiteriano e missionário da APMT (Associação Presbiterianas
de Missões Transculturais) e da Missão WEC entre indígenas da Amazônia.
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