Uma definição de cultura
Antes de falarmos da relação do cristão com a cultura, é necessário definirmos o que é cultura:
- Em sentido amplo, refere-se ao cultivo de hábitos, interesses, língua e vida artística de uma nação: histórias, símbolos, estruturas de poder, estruturas organizacionais, sistemas de controle, rituais e rotinas.
- Tudo o que caracteriza uma realidade social de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade: valores, atitudes, crenças e costumes.
Não raro o cristão se torna uma
subcultura dentro de uma nação. Ele tem seus valores, atitudes, crenças e
costumes. Mas daí, surgem as perguntas: O cristão pode participar das
festas nacionais? O cristão pode beber? Como o cristão lida com arte,
cinema, etc.? O cristão pode ser um diretor, ator, etc.? O cristão pode
ouvir música do mundo? Como o cristão lida com economia, política,
filosofia? O cristão deve impor sua cultura quando sai em missões? O que
pode ser tolerado? O que deve mudar?
Modelos de como os cristãos lidaram com a cultura ao longo da história
Para falar sobre o cristão e a cultura,
precisamos lembrar que a igreja não nasceu em nossa geração. Temos que
ser humildes e olharmos para a história da igreja para ver como os
cristãos do passado lidaram com a cultura.
H. Richard Niebuhr (1894-1962), apresentou em seu livro Cristo e cultura (download gratuito)
cinco categorias de classificação do relacionamento entre o cristão e a
cultura, fornecendo, assim, ferramentas para descrever a forma que os
cristãos encaram questões sociais, éticas, políticas e econômicas.
1. O cristão contra a cultura
Os que seguem esta corrente enfatizam
que, diante da natureza decaída da criação, é necessário que se criem
estruturas alternativas, e que estas sigam mais de perto o chamado
radical do evangelho. Esta posição foi afirmada no Didaquê, na Primeira
Epístola de Clemente, e nos escritos de Tertuliano (c.160–c.225) e dos
anabatistas do século xvi, como Michael Sattler (c.1490–1527).
Resumidamente, a cultura é caída, má e demoníaca; rejeite tudo. Exemplos:
“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias… Ó miserável Aristóteles! Que lhes proporcionaste a dialética, esse artífice hábil para construir e destruir, esse versátil camaleão que se disfarça nas sentenças, se faz violento nas conjecturas, duro nos argumentos, que fomenta contendas, molesta a si mesmo, sempre recolocando problemas antes mesmo de nada resolver. Por ela, proliferam essas intermináveis fábulas e genealogias, essas questões estéreis, esses discursos que se alastram, qual caranguejos, e contra os quais o Apóstolo nos adverte na sua carta aos Colossenses: ‘Cuidado que ninguém vos venha a enredar com suas sutilezas vazias, acordadas às tradições humanas, mas contrárias à providência do Espírito Santo’. Este foi o mal de Atenas… Ora que há de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os cristãos? Nossa formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor deve ser buscado na simplicidade do coração. Reflitam, pois, os que andam propalando seu cristianismo estóico ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de Cristo? [...] Que pesquisa necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores da fé, nada mais esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos é que para a fé, não existe objeto ulterior.” (Tertuliano, De praescr. haeret., VII)
“Quarto, unimos nossas forças no que diz respeito à separação do mal. Devemos nos afastar do mal e da perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos comunhão com isso e não nos perdermos na confusão dessas abominações. Aliás, todos que não aceitaram a fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande abominação aos olhos de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais do que coisas abomináveis. Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do que o bem e o mal, crentes e incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e fora do mundo, os templos de Deus e dos ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles poderá ter comunhão um com o outro. Para nós, pois, é obvio o imperativo do Senhor, pelo qual nos ordena que nos afastemos e nos mantenhamos longe dos maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos seus filhos e filhas. Além disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno egípcio, para não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. (…) Devemos nos afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso não passa de abominações, que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos libertou da escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos tornou aptos para o serviço de Deus, por meio do Espírito que nos ortogou.” (Confissão de Schleitheim, IV)
2. O cristão da cultura
Os ensinos do evangelho têm íntima
relação com as estruturas culturais, num processo de acomodação a esta.
Ou seja, toda e qualquer cultura é incorporada no cristianismo.
Apesar das objeções que são lançadas a
esta posição, ela tem sido influente na história da igreja. Os ensinos
de gnósticos do século III, Abelardo de Paris (1079–1142) e dos teólogos
liberais do século XIX refletem esta posição.. A igreja evangélica na
Alemanha, por influência deste entendimento, trocou seu nome para Igreja
do Reich e seus pregadores juraram obediência a Hitler.
O fundamentalismo americano acabou
espelhando esta posição, afirmando os valores básicos da cultura dos
Estados Unidos. Aqui no Brasil, se por um lado rejeitamos toda cultura
local (o cristão contra a cultura), por outro acabamos abraçando a
cultura americana (o cristão da cultura), como se ela fosse uma cultura
cristã e achamos que uma cultura é intrinsicamente superior a outra.
3. O cristão acima da cultura
Este é o conceito católico, influenciado
por Clemente de Alexandria (c.150–c.215) e Tomás de Aquino (1225–1274),
que busca uma unidade entre o cristão e a cultura, onde toda a
sociedade aparece hierarquizada. Na Idade Média o ensino eclesiástico
alcançou quase todos os aspectos da sociedade: suas práticas religiosas
formaram o calendário; seus rituais marcaram momentos importantes
(batismo, confirmação, casamento, ordenação) e seus ensinamentos
sustentavam crenças sobre moralidade, significado da vida e a vida após a
morte. A igreja e sua mensagem são institucionalizadas e o que deveria
ser condicionado culturalmente é absolutizado. Neste terceiro modelo, o
que é levado não é o evangelho, mas uma cultura.
4. O cristão e a cultura em paradoxo
Posição comumente associada a Martinho
Lutero (1483-1546) e Søren Kierkegaard (1813-1855). Esta posição mantém o
entendimento bíblico da queda e da miséria do pecado, e o chamado para
se lidar com a cultura. A relação do cristão com a cultura é marcada por
uma tensão dinâmica entre a ira e a misericórdia.
Lutero enfatizou este tema com sua
doutrina dos “dois reinos”: a mão esquerda, mundana, segura a espada do
poder no mundo, enquanto a mão direita, celeste, segura a espada do
Espírito, a Palavra de Deus. Não se pode tentar coagir a fé, nem se pode
tentar acomodar a fé aos modos seculares de pensamento.
Um exemplo: espancamento feminino. A
mulher deve processar o marido? Nesta visão paradoxal, como cristã, ela
não deveria (pois o crente não leva outro ao tribunal secular), mas como
cidadã, sim. Então, a mulher vive um conflito paradoxal.
5. O cristão como agente transformador da cultura
A cultura deve ser levada cativa ao
senhorio de Cristo. Sem desconsiderar a queda e o pecado, mas
enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que estão nesse
grupo enfatizam que um dos objetivos da redenção é transformar a
cultura. Sendo assim, por mais iníquas que sejam certas instituições,
elas não estão fora do alcance da soberania de Deus. Ou seja, mesmo
sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o cristão contra a
cultura), mas busca redimi-la, levá-la aos pés de Cristo.
Agostinho (354-430), João Calvino
(1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham Kuyper (1837-1920) são
alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de transformação
da cultura, posição que é exposta nesta obra de Niebuhr. Em Apocalipse,
vemos que Deus redime tanto a pessoa, como a diversidade cultural.
Nesta posição, não há divisão entre o
sagrado e o profano – essa é uma dicotomia católica (a divisão
sagrado/profano afirma que na igreja fazemos atividades sagradas e, no
mundo, atividades profanas; ou seja, rezar, ser padre é algo sagrado,
mas construir um prédio e ser um engenheiro são coisas profanas). A
divisão bíblica é entre o que é santo e está em pecado; e que está em
pecado deve ser santificado.
Relatório de Willowbank
A afirmação de que o cristão é um agente
transformador da cultura pode ser resumida na compreensão de que “uma
vez que o homem é criado por Deus, parte de sua cultura será rica em
beleza e bondade. Por causa da queda e do pecado do homem, toda a sua
cultura [usos e costumes] está manchada pelo pecado, e parte dela é
demoníaca” (Pacto de Lausanne §10) — o evangelho nunca é hóspede da
cultura, mas sempre seu juiz e redentor.
O Grupo de Teologia e Educação de
Lausanne propôs um modelo hierárquico de ação sobre a entrada do
evangelho na cultura (Relatório de Willowbank, 1978) que pode ser de
auxílio em nosso trato com a cultura ao nosso redor.
Categoria de costumes
Como um missionário deve proceder em uma
cultura diferente? O Relatório de Willowbank propõe uma relação
quádrupla do cristão com a cultura:
- Alguns costumes não podem ser tolerados, como a idolatria, infanticídio, canibalismo, vingança, mutilação física, prostituição ritual, entre outros.
- Alguns costumes podem ser temporariamente tolerados [por uma geração], como a escravidão, o sistema de castas, o sistema tribal, a poligamia, entre outros.
- Há alguns costumes cujas objeções não são relevantes para o evangelho, como o costume de o homem e a mulher sentarem separados nos cultos, os costumes alimentares, vestimentas, hábitos de higiene pessoal, entre outros.
- Assuntos secundários (adiáforos) sobre os quais há controvérsias mas que pode-se ter liberdade de análise, como escatologia, governo da igreja, ceia e batismo
Exemplo do ponto 2: quando chefes
tribais polígamos se convertiam, eles eram obrigados pelos missionários a
abandonar todas suas esposas, que ou morriam de fome ou se prostituiam,
podendo morrer apedrejadas. Vendo isso, os missionários acharam uma
medida sábia não exigir desse chefe tribal o abandono da poligamia, mas
exigir tal atitude da próxima geração de cristãos.
Aplicação do ponto 3: Se você é um novo
pastor, não tente mudar a cultura da igreja, se ela se encaixa neste
nível. Pregue o evangelho!
“Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. (…) Seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável (…). Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. (…) Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo está nos céus. Obedecem as leis estabelecidas, todavia superam-nas pela vida. Amam a todos, e por todos são perseguidos (…) Para simplificar, o que é a alma no corpo são no mundo os cristãos”. (5-6) (Epístola a Diogneto)
Bibliografia Complementar
No final da palestra, Franklin Ferreira apresentou uma bibliografia sobre o assunto:- Bruce J. Nicholls – Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura
- H. Richard Niebuhr - Cristo e cultura (download gratuito)
- Comissão de Lausanne – O Evangelho e a Cultura
- Michael Horton – O Cristão e a Cultura (leia um trecho)
- D. A. Carson – Cristo & Cultura: Uma releitura (Ferreira indicou este livro para quem quiser ler uma abordagem diferente sobre a questão – leia um trecho – leia uma resenha)
- Mauro Meister – Os Filhos de Deus e a Cultura Popular
- Cornelius Van Til – Cristo e Cultura
- Abraham Kuyper – Existe um lugar para a Arte, no Calvinismo?
- Solano Portela Neto – Cultura: A Fé Cristã é Contra ou A Favor?
- Ronaldo Lidório – Teologia Bíblica da Contextualização
Não sei se vocês lembram, mas já falamos, de forma simplificada, sobre o assunto aqui no VE: Os 3 Rs do Envolvimento do Cristão com a Cultura.
Os 3R de Mark Driscoll (Rejeitar, Receber ou Redimir) encaixam-se bem
nos quatro pontos apresentados pelo Relatório de Willowbank.
Por: Franklin Ferreira. Palestrado no dia 11/02/13, na 15ª Consciência Cristã (VINACC). Copyright © Franklin Ferreira.Resumo por: Voltemos Ao Evangelho. Original: Franklin Ferreira – O Cristão e a CulturaPermissões: Você está autorizado e incentivado a reproduzir e distribuir este material em qualquer formato, desde que informe o autor, seu ministério e o tradutor, não altere o conteúdo original e não o utilize para fins comerciais.